
Por entre as portas escuras, ela se mirava rumo á escadaria que daria ao trono sempre sujo que vivia.
Lentamente, abriu a porta com a chave já enferrujada e escorrendo o nariz, fechou-a com o pé e depressa, correu para a segunda porta, onde a luz amarela estava acesa.
No espelho, viu o hematoma roxo, a tatuagem do momento de prazer capital doentio que acabara de viver.
Ligou a torneira, deixou que água escorresse por entre os dedos finos, dando-lhe uma sensação de passar de tempo ou de limpeza da alma.
Lágrimas não limpariam a dor do que há anos se sujava naquele puteiro da esquina. Mesmo por que não conseguiria chorar todo dia.
Logo passou a mão no rosto e procurou tecido macio que lhe trouxesse um pouco de carinho. Coisa que só tecidos lhe davam a anos.
Ao sair daquele banheiro solitário seguiu e topou na cama escorada por uma mala que herdara da avó e ali mesmo caíra, numa posição encolhida, como se estivesse fingindo estar no útero da mãe que não conhecera.
Assim, passou uns dez a doze minutos, quase trêmula, enrolada em si mesmo, como se estivesse provando de uma sensação de proteção própria que a vida jamais a deixara sentir em alguém.
Ali se vingou de tudo, pois mostrou que mesmo sozinha e espancada, havia um sentimento de humanidade maior que o mundo lá fora e mais nobre que os prédios lá ao fundo com luzes cristalinas bem distantes de seu quartinho sujo.
Sua vingança era de certa forma consigo mesma, com o mundo que escolhera povoar, com a humanidade seca de abraços, com o dinheiro podre e doloroso da noite ganha, escondido no sutiã até as primeiras horas do dia seguinte, quando já teria forças suficientes para levanta-se e ir ao mercadinho comprar legumes e peixe fresco para o almoço.
Depois da fúria, da busca do útero próprio, batera a mão em desespero no despertador, comprado em loja de um e noventa e nove, colocado ao lado da cama sem colcha e derrubando-o, levantou-se, acendeu o cigarro que estava na cadeira única de macarrão, comprada numa feira de produtos nordestinos, e assistiu do basculante quebrado e pichado pelos vândalos, o sol engolir a lua minguante.
Já era outro dia...
Stefano Ferreira
Oeiras, madrugada do dia 27 de março de 2008
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